Foi publicado, em 05 de junho de 2024, pelo Conselho Nacional de Justiça, o Provimento nº 172, que, alterando o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional da Justiça, dá nova interpretação ao artigo 38 da Lei nº 9.514/97, a qual dispõe sobre o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e institui a alienação fiduciária.
O artigo 38 mencionado estabelece que os atos e contratos referidos na Lei nº 9.514/97 ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública.
Até a publicação do Provimento nº 172, havia muita divergência na doutrina e na jurisprudência quanto ao cabimento ou não da utilização de instrumentos particulares com efeitos de escritura pública em operações fora do SFI.
Com o Provimento, foi estabelecido que essa permissão prevista no artigo 38 da Lei nº 9.514/97, no que se refere à constituição de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do SFI, sendo ressaltado que esta previsão não exclui outras exceções legais à exigência pública de escritura pública prevista no art. 108 do Código Civil, tais como atos que envolvem administradoras de Consórcio de Imóveis e entidades integrantes do Sistema Financeiro de Habitação.
O fundamento para o entendimento consolidado através do Provimento nº 172 é de que restringir a utilização dos instrumentos particulares com força de escritura pública apenas aos integrantes do SFI “propiciará mais segurança jurídica, influenciando diretamente questões sociais e econômicas, fortalecendo os direitos dos cidadãos, sobretudo dos hipossuficientes, e funcionando como incentivo à política de desjudicialização”.
Os efeitos do Provimento nº 172 foram modulados através do Provimento nº 175, que estabeleceu que os instrumentos particulares envolvendo alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e atos conexos celebrados por sujeitos de direito não integrantes do SFI serão considerados regulares se lavrados antes de 11 de junho de 2024 (data da entrada em vigor do Provimento nº 172).
Além disso, o mencionado Provimento nº 175 também previu expressamente que, dentre as entidades autorizadas a operar no âmbito do SFI e que, portanto, podem fazer uso de instrumento particular estão incluídas, além das cooperativas de crédito, as companhias securitizadoras, agentes fiduciários e outros entes sujeitos à regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários ou do Banco Central do Brasil relativamente a atos de transmissão dos recebíveis imobiliários lastreados em operações de crédito no âmbito do SFI.
Em que pese os fundamentos expostos no texto do Provimento nº 172, entendemos que a disposição nele contida não se trata apenas de uma “nova intepretação” do artigo 38 da Lei nº 9.514/97, mas sim de verdadeira restrição indevida do texto legal, em clara afronta ao princípio da legalidade (art. 5º, II, CF/88).
Se o intuito do artigo 38 fosse, de fato, restringir a utilização dos instrumentos particulares com força de escritura pública às operações do SFI, não teria sido previsto nas “Disposições Gerais e Finais” da Lei nº 9.514/97, aplicando-se, portanto, ao Capítulo I, que trata do SFI, e do Capítulo II, que trata especificamente da alienação fiduciária de coisa imóvel, cuja contratação não é restrita a entidades que operam no SFI, nos termos do artigo 22, §1º, da mesma Lei.
Soma-se a isso o fato de que, em sentido contrário à segurança jurídica pretendida, a restrição à utilização dos instrumentos particulares desestimulará a utilização do instituto da alienação fiduciária em razão dos custos mais elevados incidentes para a constituição da garantia, fazendo com que as pessoas passem a adotar meios menos seguros nas operações.
Por fim, é válido salientar que a utilização de instrumentos particulares para a constituição da garantia não parece ser a grande causadora de problemas relacionados ao instituto da alienação fiduciária em garantia de bens imóveis a justificar a mudança de entendimento (e, menos ainda, sem alteração do texto legal).
Na verdade, os problemas que mais se observa relacionados à alienação fiduciária normalmente são referentes ao procedimento de execução, e não da constituição da garantia.
Sendo assim, espera-se que a disposição contida no Provimento nº 172/2024 seja revista, não apenas por afrontar o princípio da legalidade, mas também por desestimular a utilização do instituto da alienação fiduciária, que há tanto tempo é reconhecida como uma das formas mais seguras de garantia – seja qual for a natureza do instrumento utilizado para a sua constituição.
Por Carolina Lins