Por: Ingrid Gadelha
Publicado originalmente no CONJUR.
O anúncio do Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, apresentado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Luís Roberto Barroso, trouxe oficialmente à tona a necessidade de repensar a forma como nos comunicamos no Direito.
Numa visão sintética e prática, o pacto conclama o Judiciário a se importar com pessoas que não transitam na área jurídica, portanto não possuem conhecimento suficiente para compreender as frases e os termos técnicos costumeiramente utilizados por juristas, recomendando-se que sejam substituídos por frases diretas e palavras compreensíveis por todos os cidadãos e cidadãs.
A orientação do CNJ deve ser aplicada não só às decisões judiciais, mas também à comunicação geral do Judiciário com a sociedade, o que significa dizer que todos os serventuários da justiça precisarão ter cautela e empatia no repasse de informações compreensíveis ao jurisdicionado.
Naturalmente, as orientações do CNJ também refletem na atuação da advocacia, que deverá se adequar ao novo modelo e assim colaborar com o acesso à justiça de seus constituintes e da sociedade como um todo.
Se algumas bancas de advocacia já implantam a cultura da redação simplificada e cuidam de seu aspecto visual mais harmônico, através de investimentos em visual law, legal design, a tendência é que este movimento ganhe ainda mais força dentro das organizações.
A capacidade de apresentar um conteúdo denso num texto simplificado fará a diferença no mercado jurídico. Portanto, falar pouco e dizer muito será um atributo valorizado nos profissionais do Direito, como nunca se viu, considerando o histórico de linguagem rebuscada e verborrágica que tradicionalmente caracteriza essa carreira.
De fato, o pacto se propõe a fornecer importante contribuição para o exercício da democracia, já que boa parte das reclamações e decepções imputadas ao Judiciário brasileiro recai sobre a falta de compreensão das decisões, discussões e informações processuais. É bem por isso que se diz que o uso dessa linguagem inacessível acaba funcionando como instrumento de poder e de exclusão, já que boa parte da sociedade não a entende e, assim, não consegue participar das discussões.
Em verdade, as queixas pela falta de clareza da linguagem jurídica, o chamado “juridiquês”, no dialeto popular, não é algo inédito. Em 1596, o chanceler britânico Francis Bacon, em seu ensaio “Essays, Civil and Moral“, proferiu críticas ao palavreado utilizado na escrita legal, rotulando-o de excessivamente complicado e obscuro, e já o descrevia como uma forma de opressão sobre cidadãos comuns. Sua defesa em prol da clareza na linguagem influenciou o aprimoramento da comunicação jurídica e a busca por descomplicar os documentos legais [1].
Segundo Widick, “nossas frases se distorcem, são frases dentro de uma cláusula que está dentro de outra cláusula, vidrando os olhos e entorpecendo as mentes de nossos leitores (tradução nossa)”. Para ele, o estilo de linguagem jurídica seria prolixo, pouco claro, pomposo e chato [2].
No cenário internacional, portanto, o movimento chamado “plain english” defende uma forma de comunicação simples e direta, distanciando-se de expressões técnicas complexas ou frases confusas. A finalidade é deixar a informação mais acessível a um público mais amplo, garantindo seu total entendimento sem se perder em detalhes intrincados.
A proposta do CNJ adota como desafio a meta de conciliar a boa técnica, a clareza e a objetividade na linguagem, listando como compromissos da magistratura: eliminar termos excessivamente formais e dispensáveis à compreensão do conteúdo a ser transmitido; adotar linguagem direta e concisa nos documentos, comunicados públicos, despachos, decisões, sentenças, votos e acórdãos; explicar, sempre que possível, o impacto da decisão ou do julgamento na vida de cada pessoa e da sociedade brasileira; utilizar versão resumida dos votos nas sessões de julgamento, sem prejuízo da juntada de versão ampliada nos processos judiciais; fomentar pronunciamentos objetivos e breves nos eventos organizados pelo Poder Judiciário; reformular protocolos de eventos, dispensando, sempre que possível, formalidades excessivas; utilizar linguagem acessível à pessoa com deficiência (libras, audiodescrição e outras) e respeitosa à dignidade de toda a sociedade [3].
Para fundamentar as medidas, o pacto registra referências normativas e sugere eixos para concretizá-las, como, por exemplo, a criação de manuais e guias contendo o significado das expressões técnicas indispensáveis nos textos jurídicos.
De forma oficial, portanto, o CNJ lança as bases para uma nova educação na linguagem jurídica no Brasil, considerando a realidade da população e assim favorecendo o verdadeiro acesso à justiça, evitando a discriminação social causada pela linguagem incompreensível. A cultura do “juridiquês”, muitas vezes mantida como forma de demonstrar erudição e impor autoridade, começa a enfraquecer, cedendo espaço para o simples direito de compreender que deve ser garantido a todos os indivíduos.
Importante ressaltar que não se pretende vulgarizar o linguajar do Direito, despindo-o de qualquer liturgia ou adotando um vocabulário indigno. Trata-se, tão somente, de um esforço em romper com os excessos de palavras e frases complicadas, muitas vezes utilizados no afã de elevar o nível intelectual dos documentos ao preço de deixá-los difíceis de entender. O resultado, pois, é contraproducente, além de ser um modelo que já não se justifica no estágio atual de uma sociedade que se pretende mais igualitária e empática.
Escrever de forma incompreensível e complexa significará escrever mal. Dizer algo de forma prolixa, com uso de palavras difíceis e em latim, por exemplo, será uma postura deselegante e um tanto antidemocrática, além de romper com nosso compromisso com a inclusão. A proposta da linguagem simples é ampliar os intérpretes do Direito, garantindo o direito constitucional de acesso à justiça e pondo fim a um histórico de segregação causada pela elitização da comunicação jurídica.
[1] BACON, Francis. ENSAIOS OU CONSELHOS CIVIS E MORAIS (OS). Ícone ed. 2011.
[2] WIDICK, Richard C.; Plain english for lawyers. 5. ed. Durham, North Carolina: Carolina Academic Press, 2005. “(…) our sentences twist on, phrase within clause within clause glazing the eyes and numbing the minds of our readers.
[3] Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf. Acesso em 19. jan. 2023.