Litigância predatória e o fim da inocência

Ou a advocacia começa a discutir seriamente o combate a atuações predatórias, ou assume o risco de transformar o prestígio da classe em mera recordação. Mas esse é o ponto de chegada. Voltemos ao início. Demandas repetitivas não são novidade nos tribunais brasileiros. Ações pasteurizadas, ajuizadas às centenas, em que argumentos se reproduzem manipulados como bonecos de corda. Mas o problema não está na repetição do movimento. Porque, nesse contexto, não se coloca em perspectiva a legitimidade da pretensão; discute-se se o direito pleiteado é cabível ou não, e nada mais. Isso faz parte do jogo.

O problema se apresenta quando advogados começam a fabricar artificialmente demandas, multiplicando-as como coelhos, ao ponto de não ser possível mais identificar se aquilo sobre o que se discute judicialmente está amparado em dados reais ou fabricados. Eis o ponto de inflexão: saímos do campo das demandas repetitivas para ingressar no das demandas predatórias.

Fenômeno ainda recente, a litigância predatória não possui um conceito uniforme, embora já se consiga identificar características vinculadas a essa prática. São elas:

  1. demandas individuais homogêneas, destinadas à discussão de idêntica questão jurídica;
  2. propositura de ações por um mesmo advogado ou grupo de advogados;
  3. procurações genéricas obtidas por meio muitas vezes fraudulento;
  4. pretensões dirigidas a um mesmo réu, ou conjunto de réus, normalmente do mesmo setor econômico-produtivo;
  5. ações ajuizadas “em bloco” e em curto espaço de tempo, normalmente com requerimentos de exibição de provas;
  6. fracionamento excessivo de ações, sobrecarregando ainda mais o Judiciário pela multiplicação injustificada de pretensões que poderiam, facilmente, serem reunidos em um único processo.

Assim, a litigância predatória constitui uma espécie de dismorfia da litigância repetitiva. Ou melhor: uma litigância repetitiva de contornos abusivos. Porque, quando se cruza essa linha, é disso que se passa a falar: direito de ação convertido em assédio processual, um abuso do direito de litigar. Em última análise, portanto, a litigância predatória, capitaneada por profissionais desprovidos de senso ético, constitui uma afronta a uma das garantias mais elementares do estado de direito: na medida em que o acesso à Justiça se reveste de contornos beligerantes, em uma espécie de advocacia de guerrilha, é o próprio ordenamento que, em última hipótese, é castigado.

Tome-se aqui, como exemplo, o caso ocorrido no interior de Pernambuco, em que um mesmo advogado ajuizou mais de 11 mil ações, em sete comarcas diferentes, no intervalo de dois anos e três meses. Só no município de Ipubi (PE), cuja população era de 31 mil habitantes, o advogado teria 250 clientes e ajuizou 2.600 ações contra instituições financeiras 1.

Igualmente grave é o prejuízo que essa advocacia tem o potencial de causar aos mais vulneráveis. Idosos, analfabetos e pessoas humildes, com baixo nível de instrução, por exemplo, têm seus interesses aliciados pela ganância de advogados sem compromisso ético. Utilizando-se de expedientes fraudulentos, induzem esse público vulnerável a lhe conferir poderes de atuação amplíssimos, sob a falsa promessa de obtenção de ganhos financeiros, para, em seguida, promover ações temerárias em seus nomes, distorcendo a finalidade dessa garantia constitucional ²

Combatendo a litigância predatória

Do ponto de vista econômico, a litigância predatória pode, em uma espécie de “efeito sistêmico de adaptação” 3, contribuir para reduzir o acesso à bancarização — na medida em que, em determinadas localidades, o volume de ações é capaz de inviabilizar a oferta de determinado produto/serviço.

Não sem razão o Judiciário tem adotado mecanismos de contenção dessa prática. No âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, a Corregedoria Geral da Justiça (CGJ) e a Escola Paulista da Magistratura (EPM) promoveram, no último dia 14 de junho, o curso “Poderes do juiz em face da litigância predatória”, que resultou na aprovação de 18 enunciados interpretativos para o enfrentamento do uso abusivo do Judiciário.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por seu turno, criou uma rede de informações sobre a litigância predatória para “fomentar o compartilhamento de dados e informações entre os órgãos dos tribunais do País com atribuições de monitoramento e fiscalização de feitos judiciais que apresentem feições dessa natureza” 4. Até este mês, esse repositório do CNJ reunia 155 decisões e 88 notas técnicas de tribunais do País, todas no contexto de combate à litigância predatória.

Nesse contexto de acirrada discussão e crescente preocupação, causa espécie que justamente a OAB não tenha adotado ainda postura de protagonismo no debate. Ao reverso, as manifestações institucionais do Conselho Federal e das Seccionais 6 têm caminhado em sentido excessivamente defensivo — como se o argumento de defesa de prerrogativas servisse para ignorar os prejuízos que uma atuação predatória representa para a própria ordem constitucional que a OAB tem obrigação de defender.

O que parece ainda não haver sido bem assimilado pela Ordem é que combater a litigância predatória resultaria em privilegiar aqueles profissionais que atuam com rigor ético e em assegurar o protagonismo da OAB no debate de um tema que, com ou sem sua participação, já teve início — e cuja tendência é se densificar. Entrincheirar-se sob o argumento de intangibilidade das prerrogativas e da defesa do acesso à Justiça não servirá para sublimar a responsabilidade da OAB na temática. Ao contrário: promoverá, quando muito, um velado alijamento dos foros centrais de proposição.

É preciso coragem para admitir que parcela da advocacia tem se utilizado de meios fraudulentos para postular em Juízo e que esse movimento, se não estancado, pode colocar em xeque a integridade da própria Ordem dos Advogados. Evitar o debate não fará com que essa grave dismorfia desapareça. Fortalecer a atuação dos tribunais de ética, participar do debate público de maneira responsável e franca, além de adotar postura propositiva no sentido de reconhecer o problema e encontrar mecanismos para debelá-lo. Isso, sim, servirá ao aprimoramento da advocacia e ao fortalecimento das suas garantias constitucionais.

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Porque, se é verdade que a defesa das prerrogativas e do acesso à justiça têm de constituir o leitmotiv da OAB, é também verdade que não podem servir como argumentos de recusa ao diagnóstico de disfunções e à responsabilização dos maus profissionais. Em arremate, para atar as duas pontas: ou a advocacia começa a discutir seriamente o combate a atuações predatórias, ou assume o risco de transformar o prestígio da classe em mera recordação.

Autor

Renato Luiz F. Dowsley de Morais